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Artigo: Fisco não pode fechar empresas com dívidas tributárias elevadas (parte 1)

Artigo: Fisco não pode fechar empresas com dívidas tributárias elevadas (parte 1)

28/03/2018 às 09h22 Atualizada em 28/03/2018 às 12h22
Por: Ricardo de Freitas
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Foto: Reprodução
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A Constituição assegura às pessoas e empresas “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei” (artigo 170, parágrafo único). A lei que proíba o exercício de determinada atividade ou a sujeite a autorização ou qualificação prévia há de ser em princípio federal, por deter a União competência privativa para dispor sobre Direito Civil e Comercial e sobre condições para o exercício das profissões (Constituição, artigo 22, incisos I e XVI). Porém, se a proibição ou a restrição forem fundadas em algum dos princípios positivados no artigo 24 da Constituição (defesa do meio ambiente, do patrimônio histórico ou da saúde, por exemplo), admite-se que seja imposta também por lei estadual, desde que esta não contrarie a lei federal de normas gerais acaso existente (parágrafos 1º a 4º do mesmo dispositivo). Nessa linha o preciso voto do ministro Dias Toffoli na ADI 3.937/DF, julgada em 24/8/2017 e cujo acórdão ainda não foi publicado. No limite, atendidas as leis federais e estaduais sobre a matéria, a limitação pode decorrer até de lei municipal, dada a competência deste ente para “legislar sobre assuntos de interesse local” e “suplementar a legislação federal e a estadual no que couber” (Constituição, artigo 30, incisos I e II). Tais amarras à liberdade econômica justificam-se pelo impacto que a atividade possa ter sobre outros valores prestigiados pela Constituição: risco de câncer associado ao uso de amianto, risco de acidente ligado à venda de bebida alcoólica na beira de estradas etc. É certo que, no sempre lembrado caso American Virginia1, o STF admitiu que uma conduta desvinculada da atividade-fim da empresa motivasse a cassação da sua licença de funcionamento. Tratou-se de aferir a validade do artigo 2º, inciso II, do Decreto-lei 1.593/77 (na redação da Lei 9.822/99), segundo o qual o registro especial para a fabricação de cigarros, outorgado pela Receita Federal, será cancelado em caso de “não cumprimento de obrigação tributária principal ou acessória, relativa a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal”. Observe-se de saída que a corte fez uma leitura restritiva da regra, especificando que não é toda inadimplência que autoriza o afastamento das suas tradicionais súmulas contrárias às sanções políticas2, mas somente a resistência obstinada e infundada ao pagamento de tributos, e assim mesmo desde que se garanta ao particular o devido processo legal na impugnação das exigências e da própria cassação do registro. Mais do que isso, analisando-se de perto os acórdãos da cautelar e do recurso extraordinário, nota-se que, embora desvinculado da atividade-fim da empresa (pois a inadimplência fiscal não agrava a nocividade dos cigarros que esta fabrica), o comportamento sancionado solapa o principal mecanismo de que dispõe o poder público para implementar o valor constitucional afetado por tal atividade (a proteção da saúde). Com efeito, ao ver do STF, a produção e a venda de cigarros são atividades apenas toleradas pelo Estado, que “infelizmente” não dispõe de meios eficazes para o seu banimento. Donde as violentas intervenções que sofre: limites à propaganda e imposição de advertências ao consumidor (Constituição, artigo 220, parágrafo 4º), proibição de aditivos, mesmo inofensivos, que tornem o produto mais saboroso (Resolução Anvisa 14/2012, objeto da ADI 4.874/DF, cujo julgamento em 1ª/2/2018 restou inconclusivo) e, principalmente, tributação inibitória. Nesse sentido, o acórdão regional submetido ao crivo do STF já consignava que o tributo “tem por objetivo desestimular o contribuinte de fato, em prol de sua própria saúde” e que a sua receita é “imprescindível para que [o Estado] possa arcar com os custos das doenças relacionadas ao consumo de cigarros”. A instrumentalidade do tributo para a consecução do valor em que se lastreia a restrição à indústria do tabaco (proteção à saúde) foi, como dito, fortemente ressaltada nos dois acórdãos proferidos pelo STF. Na cautelar, o ministro Joaquim Barbosa ressaltou “as vicissitudes e idiossincrasias próprias do mercado da indústria do cigarro”, aptas “a justificar o tratamento fiscal mais oneroso”, inclusive “por questões de saúde pública (custeio dos serviços de profilaxia e tratamento das doenças causadas pelos produtos da indústria do tabaco)”. O ministro Cezar Peluso chamou a atenção para o caráter de “tributo extrafiscal proibitivo” do IPI dos cigarros, concluindo com a afirmação enfática de repugnar-lhe ter de decidir sobre uma “briga para saber quem vende veneno mais barato”. E o ministro Carlos Britto destacou a alta nocividade do produto, cuja comercialização “muito dificilmente se concilia” com a função social da propriedade ou com a defesa da saúde, notando com agudeza que, “se, de um lado, a tributação elevada é um freio, a sonegação contumaz é um acelerador”. No recurso extraordinário, o ministro Ricardo Lewandowski reiterou que a produção de cigarros é “atividade econômica meramente tolerada pelo Estado”, e o ministro Gilmar Mendes completou que a hipertributação se justifica pela “natureza altamente nociva à saúde humana dos produtos fumígeros, notadamente o cigarro”. Em suma, a cassação do registro de funcionamento não decorreu da inadimplência tributária em si mesma considerada, mas da inobservância de medida diretamente vinculada à proteção da saúde pública: por coincidência, dadas as já referidas particularidades do setor, a quitação dos tributos inibitórios, sem a qual o cigarro obterá difusão social indesejada pelo poder público. É só assim que podem ser tomadas as afirmações do ministro Cezar Peluso de que a cassação do registro de funcionamento por dívida fiscal, “antes de ser sanção estrita, é prenúncio desta”, eis que, “cancelado o registro, cessa, para a empresa inadimplente, o caráter lícito da produção de cigarros”, que passa por isso mesmo a ser proibida. A teor do artigo 3º do CTN, a licitude do ato (prius) é requisito para a incidência do tributo (posterius), o que repele a inversão lógica de qualificar-se o ato como lícito ou ilícito segundo este tenha ou não sido tributado. A menos — aí está o ponto — que o tributo se descole inteiramente de sua função fiscal e se transmude por completo (não se trata da extrafiscalidade ordinária, que não despreza o fim arrecadador) em mecanismo regulatório para a implementação de valor constitucional contraposto, em dado setor, à liberdade econômica. Menos defensável, por incorrer em grave petição de princípio, é a tese de José Afonso da Silva, em parecer apresentado ao STF. Para o eminente mestre, o decreto-lei “não estabelece meio coercitivo para a cobrança de tributo, mas sim sanções por práticas de ilícitos contra a ordem tributária”. Ora, o ilícito punido com o fechamento da empresa não é outro senão a inadimplência, de modo que tal efeito só pode ser evitado por meio da quitação das dívidas. E há mais: preocupada com a indevida generalização das teses expressas no julgamento da cautelar, a corte reforçou a extrema peculiaridade da situação ali tratada. O ministro Eros Grau descreveu o mercado do fumo como “quase um monopólio fiscal”, situação que não se repete em outros setores. O ministro Carlos Britto acrescentou que a submissão do tabaco a severo regime especial de tributação “chega a ser da essência” dessa atividade econômica. E o ministro Gilmar Mendes foi categórico: a “carga normativo-sancionatória” aplicável aos fumígeros, “levada para outros âmbitos da atividade econômica, certamente não passaria ao teste da proporcionalidade, especialmente por afrontar a liberdade de iniciativa”. É mesmo difícil pensar em outra atividade lícita que suscite repulsa semelhante à produção e à venda de cigarros, à qual restrições tão draconianas pudessem ser impostas com o beneplácito da opinião pública e do Judiciário. Existem outras atividades submetidas a autorização estatal prévia, caso da produção e da venda de combustíveis. Mas o Estado não tem interesse em erradicá-las. Muito pelo contrário: sem deixar de impor-lhes rigorosa disciplina, na verdade as protege e estimula, por lidarem com insumos básicos para toda a economia. De modo que os tributos que as oneram, ainda que elevados e acaso revestidos de função extrafiscal (induzir o consumo de um combustível em lugar de outro), não visam limitar a sua abrangência — o que seria incompatível com os benefícios fiscais que o próprio poder público lhes concede, caso do Repetro. Em suma, a autorização prévia aplicável ao setor de cigarros visa à proteção da saúde pública, objetivo perseguido principalmente por meio da tributação inibitória. Já a autorização prévia imposta ao setor de combustíveis tem em mira a segurança dos trabalhadores e usuários e a preservação do meio ambiente, finalidades garantidas pela fixação de regras diretamente ligadas à materialidade das atividades-fins que o integram. Daí que o inadimplemento substancial e injustificado de tributos acarrete a cassação do registro especial no primeiro caso, mas não no segundo, onde essa medida extrema só será legítima se decorrer da inobservância das normas de segurança e ambientais julgadas relevantes pela agência reguladora, com respaldo em lei. Isso o que o STF acabou de confirmar no ARE 1.060.488 AgR/SP (1ª Turma, relator ministro Roberto Barroso, DJe 15/2/2018), aliás de interesse de uma empresa de combustíveis. O voto do relator é irrespondível: “O Estado de São Paulo diz que não é sanção política, porque a empresa é contumaz pela inadimplência. Portanto confirma exatamente que é uma sanção política. É verdade que houve uma exceção feita pelo Plenário do Supremo naquele caso específico de uma tabacaria [a menção é à American Virginia]. Mas foi uma exceção absoluta a essa regra da sanção política”. Em conclusão, mesmo após o caso American Virginia, permanece válida a afirmação de que as restrições à atividade econômica — e especialmente aquelas conducentes à eliminação de determinado agente do mercado — só se justificam se forem voltadas a evitar ou mitigar os prejuízos que ela possa causar a outros valores constitucionais eminentes. Sabe-se que o outro fundamento adotado pelo STF para convalidar o artigo 2º, inciso II, do Decreto-lei 1.593/77 foi a defesa da livre concorrência, que ficaria arranhada com a redução de preços e a conquista de mercados supostamente induzidas pela inadimplência tributária sistemática e injustificada. A análise desse ponto será objeto das próximas colunas.

1 STF, Pleno, AC 1.657/RJ, relator para o acórdão ministro Cezar Peluso, DJe 31/8/2007; STF, Pleno, RE 550.769/RJ, relator ministro Joaquim Barbosa, DJe 3/4/2014. 2 “Súmula 70 do STF. É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.” “Súmula 323 do STF. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.” “Súmula 547 do STF. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

 é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

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