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Criminalização do “enriquecimento ilícito”

Criminalização do “enriquecimento ilícito”

22/11/2018 às 09h25 Atualizada em 22/11/2018 às 11h25
Por: Ricardo de Freitas
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Foto: Reprodução
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Nos últimos anos, especialmente em decorrência dos inúmeros casos de corrupção desvendados no Brasil, cresceu a quantidade de propostas tendentes à criminalização de certas condutas, sobretudo no tocante à atuação de agentes públicos. Nesse contexto, integrando o pacote de medidas redigido pelo Ministério Público Federal, nomeado de “10 medidas contra a corrupção”, a conduta de “enriquecimento ilícito” foi alvo das mais contundentes cruzadas, afirmando ser imprescindível sua inclusão no Código Penal, inobstante a existência de configuração da conduta como sendo um ilícito civil[1]. Em 2006, fora promulgada no Brasil a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que havia sido assinada ainda em 2003.[2] Dentre outras previsões, como a necessidade de avaliar a criminalização da corrupção privada e a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas, pontuou-se, no artigo 20, a necessidade de adoção de medidas legislativas tendentes à criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos, consubstanciado no “incremento significativo do patrimônio de um funcionário público relativos aos seus ingressos legítimos que não podem ser razoavelmente justificados por ele”[3]. Na proposta original do MPF, que incluía o artigo 312-A no Código Penal, tinha-se o delito de “enriquecimento ilícito” como sendo a conduta de “Adquirir, vender, emprestar, alugar, receber, ceder, possuir, utilizar ou usufruir, de maneira não eventual, bens, direitos ou valores cujo valor seja incompatível com os rendimentos auferidos pelo servidor público, ou por pessoa a ele equiparada, em razão de seu cargo, emprego, função pública ou mandato eletivo, ou auferidos por outro meio lícito”. A pena sugerida fora a de 3 a 8 anos, com o confisco dos bens. Ressaltou-se, contudo, a subsidiariedade do delito, eis que, se o fato constituir elemento de crime mais grave, afasta-se o tipo penal de “enriquecimento ilícito”. É o caso, por exemplo, do cometimento dos crimes de peculato ou corrupção passiva. Acaso o “enriquecimento ilícito” se afigure tão somente como elementar desses delitos, pune-se apenas o crime mais grave. A proposta do MPF fora corroborada, em 2018, pelo projeto “Novas Medidas Contra a Corrupção”[4], de iniciativa da Fundação Getúlio Vargas em parceria com a Transparência Internacional. A análise do tipo penal sugerido e de suas justificativas – ou sua inexistência –, no entanto, é o que se pretende com este artigo. Isso porque a quantidade de verbos nucleares prevista no tipo penal, contando com 9 condutas passíveis de incriminação, pode denotar eventual incongruência da proposta. O estudo de seu alcance, portanto, sobretudo em virtude do preceito secundário da norma, com pena prevista de 3 a 8 anos, é de grande importância, afastando-se os argumentos meramente retóricos, que têm o condão de obnubilar as verdadeiras intenções dos poderes de persecução criminal quando da proposta de criminalização de condutas. Como justificativa para a inclusão da conduta no Código Penal, afirmaram os membros do MPF que a medida era necessária, pois “o enriquecimento ilícito de servidor público decorre comumente da prática de corrupção e crimes conexos (…) é muito difícil punir o crime de corrupção, salvo quando uma das partes revela sua existência, o que normalmente não acontece”. E complementam, “(…) o enriquecimento ilícito, além de ser prova indireta da corrupção, é em si mesmo desvalorado, pois revela um agir imoral e ilegal de servidor público, de quem se espera um comprometimento mais significativo com a lei do que se espera do cidadão comum”.[5] Inobstante a falta de clareza no tocante ao bem jurídico-penal[6] efetivamente tutelado com a criminalização da conduta, afirmou-se posteriormente que esse estaria relacionado aos deveres de probidade administrativa do agente público, notadamente aqueles ligados à transparência das fontes de renda e de publicidade[7]. Ora, da própria justificativa do MPF já se tem que a real intenção da norma incriminadora não é outra senão a punição de fato constitutivo de outro delito, mas que por razões probatórias não se conseguiu a efetiva sanção do agente público. Nas palavras de Jorge de Figueiredo Dias, “De fato, as leis que impõem a essas pessoas [agentes do Estado] deveres especiais de manifestação do patrimônio garantem, por si mesmas, a ‘transparência patrimonial’ dos declarantes, que serve de instrumento à detenção e eventual investigação da proveniência de acréscimos patrimoniais não declarados, mas que não é, em si mesma, um bem jurídico-penal”[8]. O que se verifica na proposta do MPF é a tentativa de criminalizar a mera incongruência entre rendimentos e bens declarados de um agente público. Não se obtém sucesso na persecução de um crime tributário, por exemplo, e se busca, então, a punição por um outro delito, apenas por não se ter conseguido a punição daquele que efetivamente lesionou um bem jurídico-penal relevante. Ressalta-se, inclusive, a desnecessidade de quaisquer condutas efetivas do agente. Diferentemente da “lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores”[9], por exemplo, em que há efetivamente a necessidade de ocultação ou dissimulação, bem como a demonstração, ao menos em tese, do crime antecedente, no delito de “enriquecimento ilícito” a conduta é de menor importância – servindo apenas para dar ares de legalidade ao tipo penal –, pois basta a alegação de incompatibilidade dos rendimentos. Ademais, é clara a inversão do ônus da prova na redação do tipo penal e, por consequência, de quebra do princípio da presunção de inocência. Cabe ao MP tão somente a arguição de uma suspeita, de uma dúvida, no tocante ao patrimônio do agente. Ou seja, faz-se um check list entre as informações prestadas pelo agente à Receita Federal ou à entidade a que está vinculado e a sua remuneração. Acaso o agente não comprove a compatibilidade entre os rendimentos auferidos no cargo público e os bens que usufrui, estará preenchido o tipo penal. O MP não precisa fazer prova de suas alegações, basta demonstrar a incongruência para que o agente, se não conseguir provar o contrário, seja sancionado penalmente, com uma pena igual a de integrantes de organizações criminosas (Lei nº 12.850/2013). Não por outras razões, o Tribunal Constitucional Português declarou a inconstitucionalidade de dispositivos que criminalizavam o “enriquecimento ilícito” naquele país. Em duas oportunidades, 2012[10] e 2015[11], o Tribunal entendeu que havia: i) indefinição do bem jurídico protegido; ii) indeterminação da ação ou omissão concretamente proibida; e iii) violação do princípio da presunção de inocência. Há sempre que se analisar e debater com maior cuidado propostas tendentes a criminalizar condutas, sob pena de quebra direta aos princípios do Estado Democrático de Direito, especialmente aqueles ligados à liberdade dos cidadãos, incluídos os agentes públicos. Não é outra a conclusão de Luís Greco, “(…) a proposta do MPF de criminalizar o enriquecimento ilícito é infundada e apressada. Ela se baseia em considerações policialescas de facilitação da prova, incompatíveis com a ideia de culpabilidade e a presunção de inocência (supra, 2), e que, ainda por cima, parecem ser de duvidosa eficácia (supra, 5, c)”[12]. [1]    Lei nº 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa). Art. 9°. Constitui ato de improbidade administrativa importando enriquecimento ilícito auferir qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° desta lei, e notadamente: VII – adquirir, para si ou para outrem, no exercício de mandato, cargo, emprego ou função pública, bens de qualquer natureza cujo valor seja desproporcional à evolução do patrimônio ou à renda do agente público; [2] A necessidade de avaliação da possibilidade de criminalização da conduta de “enriquecimento ilícito” de agentes públicos também tem previsão no artigo IX da Convenção Interamericana contra a Corrupção, promulgada em 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4410.htm>. Acessado em 18/10/2018. [3] Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Decreto/D5687.htm>. Acessado em 18/10/2018. [4] Disponível em: <https://unidoscontraacorrupcao.org.br/assets/pdf/Novas_Medidas_pacote_completo.pdf>. Acessado em 18/10/2018. [5] Disponível em: <http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_2_versao-2015-06-25.pdf>. Acessado em 18/10/2018. [6] “(…) função do direito penal só pode ser, num estado democrático pluralista e laico, a tutela subsidiária de bens jurídicos dotados de dignidade penal (e carentes de pena), não a decisão de controvérsias morais, o reforço de normas morais ou, em suma, a tutela de uma moral qualquer”. (O “direito penal do bem jurídico” como princípio jurídico-constitucional implícito (à luz da jurisprudência constitucional portuguesa). In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. – Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 288). [7] Disponível em: <https://www.jota.info/justica/pelo-mp-o-crime-de-enriquecimento-ilicito-23022016>. Acessado em 18/10/2018. [8] DIAS, Jorge de Figueiredo. O “direito penal do bem jurídico” como princípio jurídico-constitucional implícito (à luz da jurisprudência constitucional portuguesa). In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. – Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 300. [9] Lei nº 9.613/98. [10] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 179/2012. Disponível em: <https://dre.pt/pesquisa/-/search/552810/details/maximized>. Acessado em 18/10/2018. [11] Acórdão do Tribunal Constitucional nº 377/2015. Disponível em: <https://dre.pt/pesquisa/-/search/69992910/details/maximized>. Acessado em 18/10/2018. [12] GRECO, Luís. Reflexões provisórias sobre o crime de enriquecimento ilícito. In: LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano. Crime e política: corrupção, financiamento irregular de partidos políticos, caixa dois eleitoral e enriquecimento ilícito. – Rio de Janeiro: FGV Editora, 2017. p. 283. Via Consultor Penal
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