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Primazia da Realidade: Três Pontos que Todo Trabalhador Deve Saber

Primazia da Realidade: Três Pontos que Todo Trabalhador Deve Saber

28/01/2022 às 04h00 Atualizada em 28/01/2022 às 07h00
Por: Leonardo Grandchamp
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A primazia da realidade é um princípio conhecido do Direito do trabalho e ele resume o título do texto de hoje: afinal, colocar a verdade do cotidiano contra um contrato assinado é uma prática diária na Justiça do Trabalho.

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Para começar a compreender a “discussão da verdade”, primeiro é necessário partir do ponto de que nenhum documento é infalível, inclusive o contrato de trabalho. Imagine como seria se todo direito trabalhista fosse negado por falta de registro na carteira de trabalho ou se na hora de ser demitido só valessem os papéis que o seu empregador desejasse te entregar. Um pouco arriscado, não é mesmo?

Para evitar fraudes e injustiças trabalhistas, as formalidades podem ser confrontadas pelo contexto de uma situação, e isso significa que os fatos prevalecem – têm primazia ou preferência – sobre a documentação, fazendo valer um direito antes negado pela formatação.

A seguir vamos abordar de que maneira esse princípio pode ser utilizado pelos profissionais da área e neste link você aprende um pouco mais sobre o papel de um advogado trabalhista.

Índice

1. Primazia da realidade: o que significa fatos contra documentos?

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2. O que diz a lei?

3. Como a Justiça aplica esse princípio?

4. O que a rescisão indireta tem a ver com isso?

5. Realidade sem desprezo documental

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6. Acordos “conscientes”: o futuro do contrato trabalhista

7. Para concluir

Primazia da realidade: o que significa fatos contra documentos?

A primazia da realidade sobre a forma valoriza fatos contra documentos, isso significa não deixar que o contrato de trabalho seja a verdade definitiva e final dentro das relações entre empregado e patrão e, diante disso, podemos “quebrar” a verdade em dois tipos: a real e a formal.

A verdade formal é um modo de dizer que algo só existe se estiver oficialmente registrado em papel e devidamente certificado. Isso se refere tanto ao conteúdo do documento, quanto à pessoa responsável por elaborar e validar esse conteúdo.

Um documento de certidão de nascimento, por exemplo, não pode ser criado por qualquer indivíduo, ele precisa estar de acordo com o ofício de um cartorário competente.

Dizer que a certidão está dentro da forma é exatamente isso: é dar a ela uma aparência oficial e condicionar à essa aparência a validação de um acontecimento, e no exemplo que demos o fato a ser validado se trata do nascimento de alguém, e o formato que valida esse fato, por sua vez, é a certidão de nascimento.

É claro que esse tipo de princípio só pode ser aplicado judicialmente, por isso o empregador não tem o direito de se recusar a fornecer a documentação e o empregado não pode confiar na precariedade dela, se baseando exclusivamente nesse argumento de que documentos não prevalecem sobre a realidade. 

Na verdade, os princípios são ferramentas de interpretação à disposição do processo e que por isso podem ser utilizados sempre que houver dúvida numa análise documental.

A intenção não é a de substituir a documentação pela informalidade, mas de poder utilizá-la a favor dos envolvidos quando e se o documento principal for inconsistente, confuso ou conflitivo com outros importantes elementos de análise do juiz.

Antes de avançarmos, vou deixar um exemplo: suponha que Ferdinando tenha sido contratado de segunda à sexta para jornada diária das oito da manhã às cinco da tarde, no entanto, como trabalha no comércio, o local precisa mais da sua mão-de-obra na época das festas de fim de ano e vésperas de feriado do que nos outros períodos.

Por causa disso, principalmente de outubro até o fim de dezembro, acaba estendendo sua rotina até às seis e meia da tarde, além disso, com grande recorrência, precisa trabalhar aos sábados ou atender nas pausas de almoço.

Apesar de nada disso constar no contrato, a realidade é que Ferdinando presta horas extras e deve receber por elas se eventualmente seu caso parar na Justiça.

Seguir à risca o contrato de Ferdinando desconsideraria todo o seu excesso de trabalho e o condenaria a abrir mão de um direito, mas de acordo com a primazia da realidade ele não vai ficar na mão.

Pode parecer que sim, mas isso não é de todo ruim para o empregador, porque também dá a ele a chance de agir de acordo com a própria necessidade, sem “paralisar” seu ambiente profissional, desde, é claro, que honre, ao final, com a realidade dessa necessidade diante o contratado.

O que diz a lei?

A lei se refere a algo que os estudiosos do Direito desenvolveram como “contrato-realidade”, basicamente se traduz no entendimento de que a palavra tem poder, e nesse sentido os acordos informais, verbais, ou deixados nas entrelinhas, também constituem contratos por ajustar obrigações e direitos conforme o hábito e a confiança.

Em outras palavras, o direito do trabalho não se “impressiona com títulos, nomes pomposos, eufemismos jurídicos, e nem mesmo com formalidades vazias como é o caso da existência de um contrato de prestação de serviços com registro em cartório ou no conselho profissional” quando na realidade o profissional é empregado comum (TRT2, número do processo: 10008157120195020603/SP, Relatora Maria Elizabeth Nunes, 12ª Turma, data de publicação 05/12/2019). 

No caso citado, a empresa queria demonstrar que a funcionária era trabalhadora autônoma porque sua documentação apontava para essa direção, dando a entender que inexistem obrigações trabalhistas, no entanto ela respondia a todos os requisitos de um vínculo de emprego de acordo com as circunstâncias do dia-a-dia.

Ao consultar o artigo 442 da Consolidação das leis trabalhistas (CLT) identificamos que “contrato individual de trabalho é o acordo tácito (implícito/velado) ou expresso (um ou outro), correspondente à relação de emprego”.

O acordo tácito ou subentendido é nada mais do que agir pelas vontades, um consentimento que existe sobre o viver na prática, independentemente do que está explícito (visível).

Outra forma de dizer que a documentação não é infalível é dizer que ela tem presunção relativa de fazer verdade, ou seja, sempre que existir prova em contrário ela pode cair por terra.

Segundo a súmula 12 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) “as anotações [realizadas] pelo empregador na carteira profissional do empregado não geram presunção ‘juris et de jure’ [impossibilidade de discussão na Justiça], mas apenas ‘juris tantum” [são verdade só se ninguém questionar].

Traduzindo a súmula acima, a documentação só vai prevalecer sem ressalvas se ela não for afrontada com oposição, veja alguns exemplos para “quebrar” um documento com presunção relativa:

  • E-mails e mensagens trocadas com ordens de serviço e horários diferentes do que está em contrato;
  • Imagens de vídeo e/ou fotos em local de trabalho diverso;
  • Depoimentos de colegas de trabalho ou ex-funcionários do mesmo empregador;
  • Transferências bancárias, contracheques, recibos, depósitos com valores diferentes, etc.

Como a Justiça aplica esse princípio?

Você já deve ter percebido que o princípio da primazia da realidade sobre a forma pode ser aplicado num contexto de duas constantes: uma é a situação de litígio, ou briga judicial porque a interpretação depende de um processo, e a outra é a incompatibilidade entre o que foi contratado e o que é vivido pelo interessado, que pode ou não ser o empregado.

Uma das aplicações mais comuns é no sentido de reconhecer o vínculo de emprego do trabalhador informal sem registro na carteira de trabalho, por alegação de fraude (STF, ADC número 66, 2020).

O Supremo reconheceu em 2020 com base na primazia da realidade de que mascarar as relações de emprego para evitar débitos trabalhistas é um ato nulo, sem efeito jurídico.

Em outra decisão com base nesse mesmo princípio, a Turma nacional de uniformização (TNU) no processo número 0001323-30.2010.4.03.6318, citou precedente de pedido de Uniformização de Interpretação de Lei Federal (PEDILEF), número 200470510073501, no sentido de que “a jurisprudência da TNU aponta no sentido de que não pode o empregado ser penalizado pelo não cumprimento de obrigação imposta ao empregador”.

Por isso, deve-se prestigiar a primazia da realidade se o empregador, obrigado a emitir documentação de insalubridade, se recusa a fazer no tempo devido e/ou da forma correta e hoje encontra-se inativo.

Isso significa que apesar da documentação sobre insalubridade dizer que o empregado não estava exposto a agentes nocivos, ou se omitir sobre essa exposição, não afasta em definitivo a possibilidade de reconhecer um adicional de insalubridade ou até uma aposentadoria especial no setor previdenciário.

Curiosamente e lançando mão de outro exemplo, esse princípio de primar pelo realismo tem sido utilizado nos últimos meses para afastar na Justiça a COVID-19 enquanto doença ocupacional ou acidente do trabalho, isso porque os juízes têm interpretado essa possibilidade de adoecer como algo típico da doença endêmica.

Por ser um fato conhecido de todos (primazia da realidade), hoje o vírus traz surtos em ondas, independentemente das relações de trabalho, com livre circulação. A doença endêmica foi literalmente deixada de fora da definição de doença ocupacional no artigo 20, parágrafo primeiro, alínea “d”, da lei 8.213/91 que trata do assunto (precedente: TRT13, Recurso ordinário trabalhista RO 0000497-50.2020.5.13.0026, ano de publicação: 2020).

Esse último exemplo de aplicação do princípio confirma o que foi dito antes, no sentido de que nem sempre ela vai beneficiar o empregado contra o empregador.

O que a rescisão indireta tem a ver com isso?

De um modo simplificado, a rescisão indireta é uma consequência prática e possível do princípio da primazia da realidade, porque por essa rescisão é permitido romper com o contrato por ele ter sido violado na prática, durante o cumprimento.

Para relembrar o leitor, a rescisão indireta está no artigo 483 da Consolidação das leis trabalhistas (CLT) e é uma “justa causa contra o empregador” que contrata de certo modo e para certos fins, mas que age de modo contrário ao que foi combinado e fora das expectativas de um acordo dentro da legislação. É o que ocorre quando o empregador contrata um serviço, mas só paga atrasado.

Em se tratando da primazia da realidade, provando o trabalhador que a prática não bate com o contrato, como função, carga horária, remuneração combinados, ou com a própria legislação trabalhista, pagando os salários em dia, depositando FGTS ou tratando o funcionário com respeito, ele tem o direito de “quebrar” esse contrato sem pedir demissão e com isso sem abrir mão das verbas rescisórias.

Como a rescisão indireta exige um processo judicial e a primazia da realidade é um princípio de uso no processo, ambos se assemelham por sinalizar, no mesmo espaço, um conflito entre “escrito”, “feito” e “falado”.

Para isso, o juiz pode analisar com ampla liberdade as reais intenções de cada lado para definir de que forma o contrato foi realmente extinto, independentemente do tipo e do nome colocado no documento levado adiante na rescisão.

No caso abaixo, por exemplo, o empregado teria solicitado ao juiz a rescisão indireta para considerar que, por culpa do seu empregador merecia ser desligado sem justa causa, com todas as verbas desse tipo de rescisão.

No entanto, o juiz se debruçou no que estava acontecendo “fora do contrato”, analisando áudios, mensagens, e-mails, depoimento dos envolvidos, testemunhas e percebeu que o empregado não tinha outra intenção a não ser a de deixar o emprego:

“Na presente situação, apesar da falta da empregadora, ao proporcionar a situação de limbo do trabalhador, verifico através dos áudios no processo e depoimento pessoal que o trabalhador obteve um novo emprego e teve intenção de deixar a empregadora. Os áudios evidenciam que o trabalhador não teve intenção de aplicar a rescisão indireta e sim de pedir demissão. Assim, não há como acolher a pretensão de rescisão indireta. Improcede o pedido de aviso prévio, multa de 40% do FGTS, Seguro Desemprego, ante a modalidade rescisória aplicável (pedido de demissão do empregado).” (TRT 11ª Região, Ação Trabalhista – Rito Ordinário 0000815-47.2020.5.11.0007, ano de 2020).

Realidade sem desprezo documental

Primar pela prática não é o mesmo que desprezar documentos, por isso a verdade dos fatos pode ser prestigiada sem que tenha que pecar pela precariedade formal. Aliás, utilizar a documentação para guardar uma situação real e assim protegê-la no futuro é o cenário mais ideal.

Precisamos ressaltar que realidade e a documentação não precisam estar em mundos opostos, mas sim complementares, até porque numa disputa judicial, o juiz é um terceiro totalmente estranho ao que aconteceu, por isso ele não tem como conhecer o resultado das coisas se não fez parte do desenrolar dos acontecimentos.

Um processo judicial, nesse sentido, opera como construção da realidade, uma realidade que não precisa ser completamente formal, mas que também vai exigir alguma formalidade em algum grau para trazer clareza e segurança jurídica.

Desde que não seja ilegal, o meio de comprovar as situações no Direito é muito aberto e dentro das relações de trabalho isso não é diferente, sendo reflexo disso o artigo 369 do Código de processo civil.

Por esse artigo, notamos que não existe uma tabela rígida de provas, porque elas são só um instrumento de verdade e não uma lista de fatos.

Mesmo quando a forma é única, o conteúdo pode ser variado, o que é o caso da ata notarial, um meio de prova registrado em cartório que pode abranger um número infinito de possibilidades.

Antes era um costume jurídico se dirigir ao registro público para lavrar e fazer constar algo para trazer validade judicial.

Mas desde a publicação do Código de processo civil em 2015, a prática virou um meio de prova com previsão legal. A ata notarial hoje é muito utilizada para transformar atos casuais ou informais, como mensagens trocadas por aplicativo, numa documentação formal.

Isso significa que a primazia da realidade passa a ser um grande combustível para a teoria geral das provas e tem influenciado o modo pelo qual elas se manifestam.  

Acordos “conscientes”: o futuro do contrato trabalhista

Os contratos “conscientes” foram uma proposta da autora americana Kim Wrigth para uma grande revolução, intencional ou não, sobre a visão tradicional dos contratos jurídicos nas relações de poder.

No âmbito trabalhista, toda relação já nasce desigual porque a subordinação faz parte de uma dinâmica natural entre chefia e funcionário dentro de qualquer estrutura econômica.

Ainda não podemos fingir que a hierarquia não existe, mas Kim propõe o “meio de campo” para diminuir os conflitos e o desequilíbrio das relações através de “comunicação inteligente” e de “partilhar” o que for combinado.

Quantas vezes você já não ouviu aquela história de alguém que foi mandado direto para o INSS sem saber o que está acontecendo ou de demissões por justa causa sem qualquer tipo de diálogo?

Um contrato é nada mais do que “promessas de trocas legais”. Afinal, como exigir responsabilidade sem participar direitos? É mais ou menos disso que a estudiosa trata.

Isso requer uma política de integridade das empresas mais afiada, que vem junto com a acessibilidade da linguagem, a oportunidade de discutir a relação e a promoção de valores alinhados com as ações e a missão estratégica do negócio.

O novo modelo de contrato rompe com o preconceito legalista de que bons acordos são exclusivamente racionais e baseados no lucro, agregando a colaboração como um interesse comum e não uma fraqueza.

Como resultado, empresas com esse tipo de abordagem têm enfrentado um número muito menor de processos na Justiça trabalhista, exatamente porque os colaboradores trabalham com um senso maior de justiça pessoal e autonomia, criando um ambiente menos hostil e mais aberto para as soluções.

Para concluir

Vimos hoje um importante princípio que sustenta o direito do trabalho: a primazia da realidade sobre a forma, em outras palavras, ele significa assumir que a realidade do emprego pode definir uma relação de trabalho mais do que o contrato escrito.

Por outro lado, a documentação não deve ser desprezada, ela só não pode ser utilizada como pretexto para a ilegalidade, violando a legislação trabalhista em detrimento dos outros.

Apesar de contraintuitivo, o princípio não é um monopólio dos empregados e tem sido utilizado para proteger também os empregadores, principalmente se não foi deles a iniciativa de violar direitos trabalhistas.

Não faz muito tempo, por exemplo, que me deparei com o caso de uma funcionária que pediu ao patrão para que não fosse registrada, porque na CTPS já constava uma anotação de emprego em relação a um cargo comissionado numa prefeitura de uma cidade distante, sem qualquer compromisso com a realidade, até porque seria fisicamente impossível a presença dela nos dois empregos.

Ela desejava manter os dois vínculos e, por isso teria pedido a falta de registro para manter o emprego fantasma.

Um caso extremo, mas que nos ajuda a entender o princípio por outra perspectiva: a valorização da realidade poderia afastar nesse caso uma condenação trabalhista se ela processasse a falta de registro. No fim das contas, a primazia da realidade é um compromisso com a boa-fé.

Em caso de dúvidas e para mais informações, não deixe de consultar um advogado especializado.

Por Aline Fleury, Além de advogada, é entusiasta da vida acadêmica.

Original de Saber A Lei

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